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Mercados das bagageiras
Qualquer um pode ser feirante por um dia e fazer uns trocos.

Em Portugal, há cada vez mais feirantes improvisados e a culpa é dos mercados da bagageira, onde gente que de feirante não tem nada utiliza a bagageira do seu carro para expor e vender o que já não faz falta lá em casa. Ali, pendurado entre o tejadilho e os estofos, há de tudo um pouco: o biquíni comprado no Brasil e os bibelôs da avó, os discos de vinil e a PlayStation do filho. Em tempos de crise, nada se perde e tudo se transforma.

"O lixo de uns é o luxo de outros", sublinha Carla Sousa, da produtora que organiza a Feira da Buzina, e que talvez seja o mais mediático dos eventos do género. Além disso, o ambiente é "giro" e sem preconceitos, fruto de uma nova atitude em relação aos artigos em segunda mão.

A Buzina geralmente alia-se a outros eventos de cariz urbano como o Lisbon Underground, o mercado de Street Food ou a Lisbon Week, pois a ideia é trazer não só os monos mas também um pouco de animação à cidade, que aos fins de semana vê fugir a sua gente para os dormitórios em redor. A feira assenta mensalmente as rodas no jardim do Arco do Cego, próximo do Campo Pequeno, mas pode invadir outros espaços, quando solicitada. Embora seja vocacionada para particulares, também acolhe projetos de solidariedade, artesãos ou jovens artistas. Cada um paga 35 ou 45 euros, consoante leve carro ou carrinha.

Foi aqui que Madalena Vidal encontrou forma de escoar com glamour velharias e recordações de viagens que entretanto perderam o valor sentimental. Na sua banca, quem compra tem direito a um morango com natas e a uma taça de champanhe, aparato finório que destoa da quinquilharia da feira. Não muito longe dali está uma carrinha cheia de decoração de jardim, fruto de despejo dos seus antigos proprietários, agora limitados a um apartamento sem espaço para os bancos e as mesas de ráfia ou os candeeiros noturnos. Muitas destas bancas são resquícios de vidas que já foram melhores. Ou até de vidas que já se foram. Cátia Neves vende ali o recheio da casa que lhe coube da herança da avó. Pratos, chávenas e toalhas de croché que subsistiram na família por décadas, mas que agora já não encontram espaço nem sentido no quotidiano das novas gerações.

Outras transpiram jovialidade, estilo e planos futuros, como a de Cristina Correia, produtora de teatro, e Mariana Machado, designer. À volta do Volkswagen que carregaram como um ovo para a feira há blusões de pele, malas de plástico fluorescente, sapatos dourados ao estilo Broadway comprados num dia em que os pés incharam em Nova Iorque, blusas que já foram de festa e pequenos eletrodomésticos que entretanto perderam a função para os robôs dos novos tempos. A ideia é ir mais leve mas com os bolsos cheios para outras compras, outras festas ou voos. Mudar é acrescentar.

PIONEIRA EM SINTRA

A primeira feira da bagageira em Portugal aconteceu em 2013, num parque de estacionamento privativo de Colares, Sintra. Desde então, o Mercado das Bagageiras passou a realizar-se no último domingo de cada mês graças ao empenho de um grupo de amigas e mães ligadas à associação de pais de uma escola. "Numa dada altura tornou-se evidente que as pessoas estavam a enfrentar cada vez mais dificuldades económicas. Estamos numa zona de casas de verão, em que as casas ficaram mas os caseiros foram dispensados. Como estávamos ligadas a uma associação de pais, achámos que talvez pudéssemos pensar em soluções. Então, uma amiga inglesa, que também vive aqui em Colares, falou-nos nestes mercados, que existem às centenas em Inglaterra. Isso permite às pessoas venderem aquilo que já não lhes faz falta lá em casa, ou o excedente da sua agricultura de subsistência, e assim conseguirem algum dinheiro extra", recorda Nelma Mariano.

Os bagageiros, quer utilizem carro ou carrinha, pagam dez euros, valor que é cobrado pelos proprietários do espaço à organização por cada parquímetro utilizado. "O que ganhamos é apenas o que vendemos nas nossas bancas durante o mercado", diz Nelma Mariano. Ou seja, o Mercado das Bagageiras de Colares está longe de ser um negócio, mas sim um evento local, que anima a freguesia no último domingo de cada mês.

Glória Serrano já lhe tomou o gosto. Ali procura sobretudo "coisas para os netos" em bom estado e com preço a condizer. Vai sempre, desde a primeira edição, e congratula-se por o mercado trazer gente e animação à terra onde "pouco ou nada acontece durante o ano". O encanto está também no ambiente: "Onde toda a gente acaba por se conhecer e conversar um bocadinho." Tem um ritual: só começa a comprar depois de "ter dado uma volta pelas bagageiras todas".

Já Sónia Rodrigues vai alternando papéis: faz parte da organização, já foi vendedora, quase sempre é compradora. "Às vezes trocamos entre nós. Se um bagageiro tem algo que nós gostamos, perguntamos se quer algo nosso. Fazemos negócio antes mesmo da feira abrir", confessa a administrativa. No passado teve uma loja de velharias, da qual sobrou muita coisa, agora finalmente vendida no mercado. Das peças que já comprou, ressalva um comboio de brincar, dos anos 40, que adquiriu por 10 euros. "Há pessoas que têm antiguidades com muito valor, mas nem sabem bem o custo delas ou querem apenas ver--se livres daquilo e por isso também se fazem aqui ótimos negócios", ressalva.

Mas não há só tralha. Também é possível comprar as peças que Marco Alves, gerente comercial mas arquiteto de formação, constrói e recicla. "É uma maneira de fazer, mostrar e vender aquilo que gosto de fazer em bricolage e decoração", justifica.

Hoje mesmo há mais uma feira de carros escancarados e pertences espalhados pelo chão. Acontece no estacionamento do Centro Comercial Fonte Nova e inclui, além das bagageiras, uma série de atividades que pretendem levar a comunidade toda a participar, segundo Fátima Batista, que organiza a iniciativa das juntas de freguesia de Benfica e São Domingos de Benfica: ioga, aulas de zumba, um ateliê de recuperação e reciclagem de móveis antigos, espaços de massagem, ou de comida. É das 11h00 às 17h00.

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